Brasília-patrimônio: desdobrar desafios e encarar o presente / Eduardo Pierrotti Rossetti

“Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais.
Há milênios desapareceu esse tipo de civilização.”
Clarice Lispector

“Cabe à inteligência retomar comando.”
Lucio Costa

“O planejamento urbano assemelha-se a uma grande orquestra em permanente execução: ainda que a música não tenha sido escrita por um só compositor, não prescinde da integração de todos para levar o projeto, ou a obra, a cabo. O esforço conjunto, porém, resulta de uma única cabeça e de um só coração.”
Lucio Costa

Sendo Brasília tão singular, pensada em perspectiva tão otimista e utópica, torna-se necessário recobrar o sentido cotidiano inerente a uma cidade. Brasília permanece instigando o desafio de projetar, de preservar e de inventar. A retomada crítica dos nexos da experiência de Brasília é oportuna para pautar uma reflexão no panorama de nossa contemporaneidade. Se o debate internacional já lança olhares críticos ao pós-modernismo, nós ainda temos muito a fazer com as experiências e com os resultados de nossa própria modernidade. Afinal, atualmente, pensar Brasília em termos de êxito ou fracasso apenas revela a falta de conhecimento sobre a dimensão que o funcionamento da cidade possui, do fluxo humano sobre seu território e da importância simbólica e regional que sua implantação conquistou.

Num âmbito mais “doméstico” há muito que se fazer para melhorar o nível do debate público sobre a preservação de Brasília, na própria cidade, superando o esquema reducionista, para muito além do mero “pode” ou “não pode”, que incide sobre quaisquer assuntos correlatos ao tombamento e à preservação, para poder estruturar um debate legítimo sobre a condução dos desígnios futuros de uma cidade-capital. Entre extremos e entre extremistas há muitas nuances e variáveis para definir uma agenda e consolidar um ambiente de diálogo profícuo entre vetores da sociedade e o Governo Distrital, bem como com o Governo Federal. Um diálogo entre tais instâncias é parte de uma construção constante e parte de um processo de aprimoramento democrático para pensar cidade, instaurando novas possibilidades e novos parâmetros para a construção de um debate mais qualificado e objetivo.

A própria imprensa local poderia ter uma atuação mais atenta e constante. É comum tratar como sinônimos, questões de peso e envergadura distintas. Assim, repito que para qualificar os termos de uma discussão, seria produtivo diferenciar o que é “agressão”, “infração” e “irregularidade” das regras e das normas urbanísticas em relação à área tombada, pois tudo se reduz em “agressão”, como se o Plano Piloto de Brasília fosse algo frágil e em risco latente de total desintegração!

À guisa de exemplo, considere-se o caso recente do proposta aventada para estacionamentos subterrâneos na Esplanada dos ministérios. O Correio Braziliense de dia 01/fevereiro, no caderno Cidades, fez uma reportagem sobre o assunto. A demanda por vagas de estacionamento é um problema comum das cidades brasileiras e não uma exclusividade da capital, havendo soluções arquitetônicas de alta qualidade para resolver tal desafio de projeto: tome-se como referência competente a solução do estacionamento realizado pelo escritório MMBB, sob os jardins do Trianon, em São Paulo. No caso da Esplanada, o assunto é apresentado com indicações gerais e com ilustrações da proposta. Mas falta aprofundar diversas questões: como é a respiração no gramado da Esplanada? …a saída de pedestres junto aos Ministérios? …o acesso de veículos? Como a proposta se apresenta em relação às questões da Portaria? Enfim, essas e muitas outras indagações não são aprofundadas, ou mesmo são desconsideradas, mas precisam ser minimamente esclarecidas para configurar uma boa informação ao leitor, ao cidadão. Ocorre o contrário: o assunto some da pauta. Sem informações o debate fica enfraquecido e sem referenciais, valorizando informações de bastidores e abrindo espaços para detrações e para manifestação de toda sorte de argumentos daqueles que se arvoram os legítimos “defensores” de Brasília, em oposição aos supostos “destruidores”, construindo o esquema maniqueísta de “bons X maus”, que ignora o assunto em pauta, mas que reduz tudo a um mero problema de “pode” ou “não pode”.

Para explorar mais o assunto tomado como exemplo —estacionamentos subterrâneos na Esplanada— considero que é preciso compreender a Esplanada dos Ministérios como uma super-estrutura urbana, com seus subsolos, com sua vias paralelas e espaços urbanos contíguos, devidamente integrável a uma infraestrutura de transporte de massa. Por exemplo, um bonde (tram) poderia ser implantado nas vias N2 e S2 instaurando usos efetivos nesses espaços, ampliando sua utilidade e seu significado. Assim, antes de qualquer proposta mirabolante seria possível estudar as conexões entre um lado e outro da Esplanada dos Ministérios através de uma galeria semi-enterrada, nos moldes da Galeria dos Estados, definindo espaços de permanência, cafés, lojas e ambientes de interesse coletivo que construam uma articulação no sentido Norte-Sul dos tecidos urbanos conexos à Esplanada, e às vias N2 e S2. A complexidade da Esplanada se amplia quando se observa os usos e ocupações dos espaços públicos com ambulantes e vendedores de toda sorte, bem como a heterogeneidade atual dos espaços públicos entre cada bloco ministerial.

Enquanto a hipocrisia pode grassar entre discursos de matrizes ideológicas sortidas, variando do tom apologético ao elogio vazio, a cidade precisa seguir vivendo o seu normal, ou seja, viver o seu cotidiano urbano a despeito do monumental e do midiático. O uso cotidiano do Plano Piloto de Brasília revela a situação de descaso com o espaço público é patente, sendo premente reverter tal quadro. Somente com ações de intervenção de desenho urbano efetivo, atento a acessibilidade do cidadão, com passeios, bancos, iluminação, bicicletário, ciclovias, paisagismo, mobiliário urbano, etc, que proporcionem o pleno uso do espaço público. Para a cidade-capital funcionar há muito o que projetar e planejar. Para cumprir ser desígnio máximo de ser a cidade-capital do Brasil, Brasília não pode mais ser uma cidade mal tratada e mal cuidada, tornando-se quase um arremedo de si própria.

Linha do horizonte ceu e Eixao ao Norte, © Eduardo Pierrotti Rossetti

Gostar, odiar e entender

Desenhada na linha do horizonte, sobre uma topografia suave, delimitada por um lago e com uma abóboda celeste potente, Brasília é artificial. Talvez seja preciso ainda muita maturidade —lembremos de Ouro Preto— pois Brasília está em construção. Se por um lado, a formação de Brasília se faz por um amálgama humano que se cataliza com interesses e oportunidades heterogêneas de atração de mão-de-obra e trabalhadores qualificados, com diversificadas ambições, por outro lado, a cidade é formada por uma população com as mais variadas origens, que tem orgulho de morar aqui, de ter seus filhos e de viver aqui. Os que odeiam a cidade são muitos, mas há um sentimento de gostar da cidade absolutamente difuso. A cidade tem seus heróis, seus personagens, seus músicos, seus poetas, seus jornalistas, seus artistas, seus fotógrafos, seus esportistas, suas religiões, seus folclores, suas estórias, seus arquitetos e urbanistas, além de seus políticos.1

Hoje parece ser possível gostar de Brasília sem o peso trágico dos herdeiros do esforço inaugural, sem se ancorar no “passado esplendoroso” de caráter civilizacional a que seu projeto pertence. O ar seco ainda é puro, há brisa e muito vento, o céu é lindíssimo, inebriante e a paisagem do cerrado, marcante. Cinéfilos, autoridades, assessores, ascensoristas e policiais podem se misturar numa plateia do Teatro Nacional para assistir um concerto; pode-se encontrar o embaixador da Itália numa pizzaria: coisas de Brasília. A recente visita da UNESCO detonou uma saraivada de indagações dos novos alunos de arquitetura: “mas professor, nós vamos perder o titulo?”. Diante da provocação notei este “nós” pode sinalizar um apresso salutar e uma maneira cotidiana de lidar com a cidade-patrimônio. A cidade é um fato, existe, acontecem coisas extra-políticas e é preciso circular e querer ver o seu normal: Brasília não é obvia! A comemoração dos 50 anos foi uma oportunidade perdida, que deve servir de motivação para fecundar uma reflexão menos casuísta, mais oportuna que oportunista.

Há ainda um fenômeno curioso sobre a cidade: Brasília precisa ser “entendida”! Desconheço a demanda de “entender” São Paulo, Veneza, Nova York, ou qualquer outra cidade, mas todos —arquitetos, urbanistas, historiadores, sociólogos, antropólogos, cineastas, fotógrafos, jornalistas, políticos…— precisam “entender” Brasília. Quase como um atavismo, parece que está no DNA de Brasília ser “entendida”, especialmente, é elementar, por todos os críticos de arquitetura. Desde 1959, com o Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte, quando “a cidade” era um babilônico canteiro de obras, as análises e abordagens já vaticinaram verdades, sacralizaram aspectos, imortalizaram mitos da cidade modernista com toda gama de mazelas que ela possui, desde sua gênese. Longe de qualquer bairrismo indago: até quando Brasília terá a sina de ser “entendida” por experts de todas as latitudes, que passam 2 ou 3 dias no Plano Piloto, querem “entender” tudo e ainda ditar regras sobre o que fazer ou não, para resolver aquilo que, pressupostamente, representa a falência múltipla do modernismo?

Passagem de pedestres no SCS, © Eduardo Pierrotti Rossetti

Planejar é preciso

O planejamento urbano do Distrito Federal tem impacto direto sobre o Plano Piloto de Brasília. Assim, para preservar o Plano Piloto é preciso planejar o Distrito Federal. As correlações entre planejamento, preservação e centro histórico já foram há muito tempo problematizadas pela Carta de Washington. Brasília tem um potente valor patrimonial —nacional e internacional— justamente por seu “conjunto urbanístico”, portanto, não se deveria pensar num “fazer cidadead hoc, com projetos arquitetônicos e urbanísticos pontuais, desarticulados, com obras e alterações viárias sem conexões sistêmicas, ou eleger intervenções sem um projeto de planejamento urbano consistente em escala regional, afinal, trata-se da capital do país!2

O próprio título tem algo que parece elementar, mas em Brasília nada é óbvio! Encarar o presente para tratar/pensar sobre uma cidade pode parecer elementar, mas Brasília ainda é considerada com o peso excessivo do que se aponta no Relatório do Plano Piloto de Lucio Costa e com as supostas glórias perdidas. Já existem contribuições sobre a história de Brasília, revelando as transformações formais que o plano urbano do Relatório sofreu para se configurar como arcabouço da cidade que foi sendo efetivamente implantada e construída no Planalto Central, com o devido “ok” de Lucio Costa, para ser inaugurada pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1960. Reconhecer o valor histórico do Plano Piloto contido no Relatório de 1957 é fundamental, mas é preciso reconhecer seus limites como oráculo exclusivo para pautar ações futuras.

Para tanto, entendo ainda que é preciso reconhecer o valor histórico e o valor simbólico da Portaria nº314/1992-IPHAN, mas também é preciso repensar e efetuar uma abordagem criteriosa sobre suas limitações e sobre seu alcance como instrumento efetivo de preservação do Plano Piloto de Brasília —ora articulada com a Portaria nº68/2012-IPHAN, recém editada, e que define o entorno da coisa tombada. Para além da ideia tombada, o resultado desse tombamento tem implicações práticas sobre a gestão do espaço urbano e sobre a preservação dos edifícios que não conseguem ser abarcadas pela Portaria, abrindo um flanco perigoso de flexibilidade e interpretação.

Da parte de Lucio Costa parece bonito manter certa ataraxia ao pensar a cidade já com imensa perspectiva temporal. Afinal, ele sabe muito bem que uma cidade é feita em séculos e uma cidade-capital se consolida dentro de um campo de transformações políticas, sociais e culturais numa complexa correlação com seus tempos históricos. Hoje, é preciso investigar as tensões entre o ideário geral da cidade e o projeto urbano consolidado, a fim de debater alternativas e possibilidades novas, desdobrando seu projeto adiante. Há um conjunto de enfrentamentos políticos e urbanísticos de maior envergadura que demandam ações de efetiva transformação dos parâmetros e para isso será preciso superar práticas políticas obsoletas. Contudo, no horizonte de qualquer reflexão, o tombamento de Brasília tem que ser um fator sine qua non para pensar a cidade. O tombamento de Brasília não se pode ser tomado como uma mera questão contra a qual, ou apesar da qual, ou a despeito da qual, se pretende planejar, projetar ou refletir. O tombamento de Brasília não pode ser como a “Geni” da música de Chico Buarque, sendo ora “maldita”, ora “bendita”, a depender de quem dela se serve!

Dentro dos desafios atuais cabe pensar seus espaços urbanos, e não apenas nos monumentos mas, sobretudo, no que existe e no que não existe de espaço urbano qualificado entre tais monumentos. O vazio difere do nada: entre os edifícios de caráter monumental e representativo da capital há falta de conexão, falta de correlação, de coesão, podendo reduzir Brasília num acúmulo de belos edifícios monumentais, o que não contribui para consolidar uma cidade-capital vivaz. À guisa de exemplo, considere-se o percurso entre a Plataforma da Rodoviária do Plano Piloto e a Catedral de Brasília em que é preciso vencer uma distancia razoável e “caminhável” (walkable), mas que se configura num verdadeiro martírio.

Saida do Metro na Asa Sul, © Eduardo Pierrotti Rossetti

Circular também é preciso

A circulação é o grande desafio de Brasília. Trata-se mais do que apenas um problema de mobilidade urbana, mas sim de uma visão estratégicas sobre a possibilidade de circular e fluir nos territórios da cidade para dela poder usufruir. O planejamento do transporte em escala regional tem impacto direto na área tombada, bem como com impacto sobre o tecido urbano do Plano Piloto. A Carta de Washington já apontou que deve haver um planejamento dos meios de transportes para equacionar os deslocamentos pelo território da área tombada e suas conexões com as áreas urbanas contíguas, sem comprometer a forma urbana do centro histórico. E não basta apenas implantar um sistema de levar e trazer gente para o Plano Piloto. É preciso trabalhar com redes de circulação através da integração de meios de transporte e percursos qualificados para os pedestres.

Diferentes modalidades de transporte de massa podem se adaptar para serem implantadas no arcabouço viário do Plano Piloto e criar um sistema civilizado de circulação, condigno de uma Capital. Além de ampliar a rede e o alcance da estrutura metroviária, as estações de metrô do Plano Piloto podem ser parte de uma infraestrutura de conexão entre as quadras 100 e 200. Efetuando um competente ajuste topográfico as estações podem funcionar como passagens e articular passeios e ambientes de estar, incluindo serviços e atividades urbanas entre as superquadras. Sistema de transporte de massa eficiente e abrangente, articulado com a melhoria absoluta da segurança pública são os dois fatores que podem transformar o uso, a vivência e o funcionamento de uma cidade, como ocorreu com Nova York.

Plataforma a o SBN, © Eduardo Pierrotti Rossetti

A maldição da setorização

A setorização é outro aspecto da gênese do Plano Piloto que sempre é alvo de interpretações sobre o caráter modernista do DNA da cidade, sendo muitas vezes condenado a priori para as mais diversas mazelas. Ainda hoje, confunde-se a setorização do Plano Piloto de Brasília com a falta de um desenho urbano mais consequente para cada um dos setores urbanos. Um projeto de desenho urbano para os setores poderiam assegurar acessos, prover infraestrutura e qualificar espaços, incrementando uma vida urbana animada ao possibilitar o funcionamento pleno de sua latente escala gregária. Os setores do Plano Piloto têm projetos e histórias a serem melhor investigados para poderem ser melhor criticados, uma vez que sua consolidação se deu em décadas e não apenas na fase heroica da nova capital.

Em termos de paisagem, a concepção dos setores centrais do Plano Piloto sempre deteve a expectativa de maior adensamento para construir um skyline do que é a cidade em seu caráter não monumental, configurando uma imagem para além da Esplanada e do Eixo Monumental. A concepção dos setores centrais anteviu no jogo volumétrico de seus edifícios, o contraponto adequado para a escala monumental. Portanto, a verticalidade dos setores centrais e a diversidade de arquiteturas não constituem, por si só, como um problema.

A preocupação com as soluções do desenho urbano dos Setores Centrais, bem como as normas edilícias devem qualificar a consolidação de espaços públicos de transição e permanência entre os edifícios, com usos semi-públicos, áreas de estar e ambiente citadinos. Neste sentido, é imprescindível considerar a relação entre a forma urbana e suas arquiteturas, trabalhando com uma implantação cuidadosa, atenta ao desenho do pavimento térreo, recobrando que aqui que não há frente e fundo, pois as arquiteturas devem ser vistas de todos os lados.

Na inter-relação dos setores e na inter-relação dos valores da escala residencial, da escala gregária e da escala bucólica, os territórios urbanos definidos pelas Quadras 700 e Quadras 900 (Norte e Sul) também precisam ser objeto de ampla reflexão, a fim de qualificarem e complementarem os usos da área tombada. As quadras 700, 900 e talvez também as quadras 600, são fundamentais para assegurar a percepção volumétrica das superquadras e dos Setores Centrais do Plano Piloto. Talvez o adensamento e a maior diversidade de usos do Plano Piloto possa ocorrer nessas áreas, mediante estudos e análises técnicas qualificadas, independente de eventos de grande escala, tais como Copa do Mundo ou Olimpíada. Alem disso, torna-se premente identificar setores urbanos e/ou lotes com potencial transformação de usos para refletir e adiantar possibilidades de suas transformações, tais como o Setor de Indústrias Gráficas, Setor de Garagens Oficiais, Setor de Áreas Isoladas Norte, etc.

As quadras 700 são um dos trunfos de Brasília na transformação de seu funcionamento, pois estas quadras poderiam ter estudos sobre seu adensamento, com vistas a não comprometer o tecido histórico das quadras 100, 200, 300 e 400 que configuram mais fortemente o Plano do Lucio, a imagem do Plano Piloto! Adensamento significa gente: gente morando, circulando, estudando, comendo, usando e demandando serviços… Trata-se de um tecido urbano que pode consolidar uma dose de normalidade a cidade-capital, como contraponto com o tecido histórico das superquadras. A falta desse contraponto urbanístico define um vasto território dentro da área tombada sem qualidade arquitetônica e urbanisticamente questionável. Trata-se de uma oportunidade de pensar o fazer cidade dentro dos limites da área tombada, crescendo por dentro, e não a quilômetros de distância.

Pitorescas quadras comerciais das quadras 700 Norte, © Eduardo Pierrotti Rossetti

Arquiteturas de Brasília

Para não ser mais que um arremedo de si própria, também é preciso avaliar a fortuna crítica das arquiteturas de Brasília. O peso da arquitetura representativa elaborada por Oscar Niemeyer, com imensa valorização dos aspectos formais não pode malograr a gestação de novas arquiteturas com outras estratégias de projeto. É preciso potencializar necessária inclusão de arquitetura contemporânea de qualidade na área tombada, conforme preconiza o Memorando de Viena. Para tanto, os concursos públicos para contratação de obras de arquitetura se constituem como uma grande possibilidade de instaurar um amplo debate sobre novas arquiteturas para Brasília.

Ao mesmo tempo, torna-se imprescindível avaliar as arquiteturas de Brasília, pois há um conjunto de arquiteturas muito mais heterogêneo do que se vislumbra preliminarmente, com a destacada presença de arquitetos de variadas origens e formações. Brasília possui uma vasta gama de edifícios que conformam um conjunto heterogêneo de arquiteturas, com obras importantes que mereceriam estudos visando o tombamento, como por exemplo, o edifício-sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Na âmbito da produção de arquitetura residencial das superquadras há hoje uma equivalência na proteção, sem distinção de suas qualidades arquitetônicas e urbanísticas, com exceção da “Unidade de vizinhança3. Tal fato demanda estudos sobre quais superquadras preservar e quais blocos merecem ser tombados, como por exemplo, a SQN 206, projeto de Marcílio Mendes Ferreira.

Assim, é preciso estudar, analisar e valorizar arquiteturas que merecem algum tipo de proteção e preservação futura, para abrir possibilidades de renovação arquitetônica com inserção de arquiteturas contemporâneas. Somente com a retomada crítica dos nexos das experiências arquitetônicas da produção de Brasília é possível ampliar a compreensão dessa produção arquitetônica que permanece obliterada pelo peso da arquitetura monumental da capital, onde Oscar Niemeyer reinava absoluto.

Mulher apressada e o Congresso, © Eduardo Pierrotti Rossetti

Brasília = cidade-patrimônio

Ainda seria possível abordar muitas outras nuances das problemáticas urbanas de Brasília, tais como, por exemplo: a via W3, o uso do Lago Paranoá, o autódromo Nelson Piquet, a urbanização do Noroeste, as transformações junto a EPIA, a sub-utilização da Rodo-Ferroviária, a dinâmica sócio-espacial do CONIC e do Conjunto Nacional, o novo Estádio Mane Garrincha, a expansão da administração federal, as demandas por embaixadas, o processo de ocupação e transformação urbana da Vila Planalto, a especulação imobiliária no Plano Piloto, todas as áreas verdes e espaços de parque, o grande potencial gregário, como o Complexo Cultural da FUNARTE.

Por fim, reitero meu entendimento de que o tombamento de Brasília é um fato. Formal e oficialmente, deve ser recobrado que o tombamento tem que ser tomado com um fator inerente a qualquer reflexão urbana, para planejar o território do Plano Piloto e do Distrito Federal. O tombamento não deve ser uma “moeda de troca” e não pode ser tomado como uma mera questão contra a qual, ou apesar da qual, ou a despeito da qual, se pretende planejar, projetar ou refletir. Considerando que Brasília é excepcional, torna-se imperioso reagir a quaisquer ações que pretendam transformar Brasília numa cidade comum, banalizando suas singularidades, seja por ignorância, ingenuidade ou má fé.

Diante de tudo isso, no contexto de uma Brasília tombada e com um patrimônio arquitetônico singular, entendo que é preciso equacionar a tensão entre o que efetivamente se transforma em detrimento do que supostamente se perde, com uma abordagem lúcida e crítica, tão vigorosa quanto o Plano que “pilotou” sua invenção. Parafraseando Lucio Costa, cabe à inteligência retomar o comando e dar o tom para o “esforço conjunto” da orquestra do planejamento urbano.

* o artigo homônimo, em versão integral, foi apresentado no seminário do DOCOMOMO Sul, março/2013, em Porto Alegre, na Faculdade de Arquitetura da UFGRS, constando em seus anais.

Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto, professor e pesquisador (UniCEUB e PPG-FAU-UnB)

 

Referência:

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Arquiteturas de Brasília. Brasília: Instituto Terceiro Setor, 2012.

  1. Recentemente a coleção “Arte em Brasília: cinco décadas de cultura” aborda as miríades da produção cultural e das manifestações de Brasília.
  2. Aqui, eu não abordarei a recente contratação que o Governo do Distrito Federal empreendeu junto de uma empresa estrangeira para elaboração um plano estratégico para do Distrito Federal, excluindo a área tombada. Faltam informações e tal assunto vale uma discussão própria. Tal reflexão deve trabalhar também com o PPCUB – Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, cuja situação é incerta.
  3. Esta “Unidade de vizinhança” é formada pelas superquadras 107, 108, 307 e 308.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Brasília-patrimônio: desdobrar desafios e encarar o presente / Eduardo Pierrotti Rossetti" 18 Abr 2013. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-108929/brasilia-patrimonio-desdobrar-desafios-e-encarar-o-presente-eduardo-pierrotti-rossetti> ISSN 0719-8906

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